A PARÓDIA DOS ERROS
“This is the original Parody Of Errors”
William Shakespeare
“I bet do not bet is better”
Croupier honesto (e desempregado)
PERSONAGENS: Muitos, mais q’uma porção. Todos os personagens são reais, e já disse Dastaiévski que toda realidade pertence à ficção. Portanto, ler e descobrir, eis a solução.
ATO ÚNICO
Cena I
[Bar-do-Chinês-das-Arábias, ponto final da Cruz Machado com a João Gualberto. Os amigos discutem sobre uma aposta ]
ACADÊMICO BATATA [Bebe e fala ao mesmo tempo]
- A aposta e a jogatina são tradições imanentes de todos os estudantes! Não as joguem na latrina! Lancem suas idéias para que, sobre a mesa, em breve lancemos e colhamos moedas!
DITA
- Continue a beber, e logo vai se lançar à latrina com todas as suas moedas, rogando, qual apaixonado na Fontana di Trevi, para que o sofrimento o abandone e não o leve. Assim como na fonte do amor, jamais recuperará o que lá no fundo investiu, pois, se a nota do redator não viu, a prenda já foi escolhida. É pastel de ovo-de-pomba, e, mesmo que não acredite, é comida.
NILTON BOBBIO
- Certo, sobre o prêmio não podemos deliberar. Que tal, então, discutir a aposta? Já tenho uma proposta: PAR x PDU, quem vai ganhar?
DITA
- Segundo a lógica aristotélica, não há outra opção que o PAR. Somos da esquerda a variante mais fina, o pijama do rosa mais azul que veste a mais mimada menina. Não reinventamos a roda, por andarmos de marcha a ré, mas sem nenhuma fé criamos uma cor filatélica que dita a moda. Temos uma palheta sob medida: não é rebelde, não é rupestre, não é urbana, não é cigana, não causa furor, não traz candor, em resumo, não representa nada. Dista do verde-colifórmico do PDU, musgo onde pastam bodes que chegados a onze na estação de agosto, abandonam da pelagem a cor de mosto e desaparecem como alimento dos urubus.
ACADÊMICO BATATA
- Concordo. Sem honra ou glória, renovamos a história usando guache no pintar. Éramos (mais de seis, sabeis?) da esquerda a colorida sensação nos campos ressecados da opressão. Vibrante e harmoniosa era nossa bandeira rosa-choque, pujante e revoluta n’alta gávea a balançar, dos tempos em que galés fenícias singravam o alto-mar. Veio o tempo implacável, milênios d’intempéries, nuvens soluçantes que às flâmulas pujantes desbotam, tiram o brilho, a cor, o viço, dão-lhes sumiço... Assim, aos frangalhos, fustigada pelos torrões de granizo, nosso pendão se transformou em azul a partir do rosa, e nossa linda poesia na pior e mais jurídica prosa.
DITA
- Ótima consideração, apesar de não chegar a ser uma idéia. Não tivesse o partido eu como orador, negaria todos os princípios da Paidéia, e transformaria em louco o mais sábio educador. A última discussão relevante do PAR foi sobre os candidatos a mascote do partido, pois já havia passado a definição da cor da camiseta e a época do trote, e acho que a Tênia do Mucilo ganhou, só porque de beber ele foi impedido, e lamentou não ficar diariamente cozido.
ACADÊMICO BATATA
- Não era tênia, era um cisto de Esquistossoma mansoni na meninge. E quem ganhou a disputa foi a tua cadela que usa fralda, luta aikidô e já participou como coadjuvante no fringe.
NILTON BOBBIO
- Amiguinhos! Eu fui do CAHS presidente, nas incríveis descobertas burocráticas sou experiente, como a criança que antes de todos perde os dentes da frente e caçoa dos velhos dentuços. E do alto da minha sabedoria presidencial, banguela de minhas faculdades mentais, afirmo que Mozart foi o farmacêutico dos florais, que o marxismo é meta-discurso morto, que a esquerda crítica deve ferver no cal e, é claro, que além de não ter pau, Garrincha não era torto. Agora que ouvida está toda a verdade, deixemos de lado as paixões da imaturidade, pois logo virão outros para discutir o óbvio e superar as pedras onde tropeçou o pacóvio.
Cena II
(Entram no bar M&M e vice-versa e Renegumelo)
RENEGUMELO [Veste uma coroa espetacular, similar a um cogumelo]
- Séquito de esporos polvilhados por este Cogumelo que advoga em muitos foros, saibam: a alguém fungado não se elogia os cabelos, assim como a cavalo dado só resta avaliar os pêlos! Eu já nasci no mais alto cume, rei em manjedoura d’estrume, mas não é tudo que eu sei: respondam-me, energúmenos, o que está pegando?
M&M ♂ [Usa um enorme óculos escuro. Gesticula muito, escravo das próprias mãos]
- Eu, particularmente e sem ninguém notar, pego as ancas de minha nova companheira, mas, na instância da panelinha sorrateira, pegam-se uns aos outros na decisão da nova aposta do PAR. Uma aposta bem filha-da-puta, meu!
RENEGUMELO
- Enquanto retoco meus apliques, proponho uma tocaia contra o inconveniente Leandro Mantra Tao, inimigo superveniente e mortal, vitimado pelos mais anti-partidários chiliques.
M&M ♂
- Baita filho da puta, meu!
M&M ♀ (Num surto, estimulada por M&M ♂, que funga em sua nuca)
– Ah, é o Mantra Tao que escreve e age de forma estranha, que com filosofias ásperas e marmita de pão seco nos assanha e que ainda se autodenomina um alforríneo apoliado?
RENEGUMELO
- Isso é mais certo que errado, pois ele de fato é um apolíneo alforriado. Gostaria de vê-lo como uma nova Fênix feita de pão queimado. Fosse eu Felipe Dreamer, mal vestido, maconheiro e discípulo de Foucault, diria que devemos vigiar e punir este infrator, rotulá-lo de microfísico cocô e nele impingir a mais previsível e segura dor.
M&M ♂
- Ele é só filho da puta, meu, e digo mais: um baita filho da puta! E também um filho da mãe, já disse isso? Quem ele pensa que é? Mais filho da p..., digo, mais popular que nós?
M&M ♀ [Num frêmito, estimulada por M&M ♂ , que pega seus peitos]
- Uhm... É... Mesmo sendo o lema do inimigo, eu dou a torcer (ai, no umbigo não!) o meu umbigo: tem que participar 100% do PAR ou ir pro cantinho chorar a sós!
M&M ♂
- Como seria essa tocaia? Com muita filha-da-putice, não? Já a aprovo de antemão, mesmo q’envolva eu babando de histeria, gritando “filho da puta, filho da puta” ou a AAAAA...D mandando mal na bateria.
M&M ♀ [Num ímpeto, estimulada por M&M ♂ , que levanta sua saia]
- Ai, você é tão nojento! Minha tristeza precisa de alguém para embolar um baseado, mas a esquerda-dos-piás-de-prédio deixou de lado o uso inteligente da inteligência e do fumo libertário da maconha! Este partido é uma agência do tédio que reúne a cúpula mais bisonha!
M&M ♂ [canta uma serenata para M&M ♀ ]
- Não vês o gel que brilha em meu cabelo
Minha tez bronzeada à luz artificial
Tratada com cremes e bolsas de gelo
Que transformam qualquer a-ni-mal?
Não vês que minha vaidade é sem fim
E que não serve a ti, apenas a mim?
Coberto toda a manhã com a menta
Do mais raro e importado ungüento,
Este corpo que você beija e tenta
É a prova de que não sou nojento!
M&M ♀ [Num estalo, estimulada por M&M ♂, que oculta suas mãos em um local indizível]
- Essa discussão é a violência mais violenta! Trata com euforia de preconceitos que ninguém aceita e nega, como minha rinite, a panacéia diária do emboladinho verde que cura o conservadorismo, a falta de criatividade e a artrite.
RENEGUMELO [para M&M ♂]
- Se ela não vê, eu vejo, se ela não quer, eu quero! Com todo o respeito, és o favorito e mais filho-da-puta smurf azul de uma terra de pombas mancas e gárgulas de ferro que revoluteiam nas grutas onde impera o Cogumelo-Rei! Praticas com seu pônei o difícil turfe na serra para ser prestigiado nos jogos jurídicos! Gargalhas alto, briga com bêbados e acompanhas anjos nefídicos! Exiges de todos a tua lei, mas jamais questionas o estatuto do parista deletério! Respeitas os mandamentos, adicionado de um, que é praticar o adultério, e multiplicas à conta o que de improfícuo sabe contar, que são alguns dedos da mão, e apenas para citar, tens por alterego Gargamel e pões em bom conceito a traição de Caim&Abel.
M&M ♂
- Obrigado, mas chega disso, porra! Imagino já nossa brutal desforra. Uma peleja sem motivação, igual àquelas de Lampião; o primeiro golpe sempre por trás, e acompanhado de menos de dois não se faz, pois às vezes é preciso que segurem nosso punho quando é o diabo que aparece no meio do redemunho.
RENEGUMELO
- Agora que decidimos a aposta neste bar sujo e infecto, desconsideramos a opinião do resto e descobrimos um novo bode expiatório, a Executiva planejará o que faremos em segredo circunspecto, e por tão bem termos manejado nosso cabresto sequer seremos condenados ao sanatório!
Cena III
(Entram Menina, G-3 e Pira E Se Acaba)
PIRA E SE ACABA [Menina sussurra o discurso]
- O’vi parte da conversa e tiv’uma idéia boa à beça. A próstata, digo, po-prosta do Renegumelo é cheia de boas intenções, pois nele a bondade é como nos tru-beculosos os pulmões. A gente pode iniciar um círculo vicioso de fofocas contra o Leandro Mantra Tao, para que ele fique louco e tente reagir, e aí temos desculpa para o fratí... fatrí... frací... fati...
MENINA [para Pira E Se Acaba]
- Fra-tri-cí-di-o!.
PIRA E SE ACABA
- Isso, ‘brigado...
[alguém grita]
- Menina, você ainda não é presidenta pra usar porta-voz!
MENINA [Alterada]
- Ai, me inscreve na pauta! Isso é crime! É crime! Eu estou profundamente ofendida, porque alguém é insano e eu, ser humano! Sinto-me como uma flor sem pétalas que cheira a meia, como esturricada sereia, como despedaçada noz!
G-3 [Bate com os punhos]
- Lamento, Menina, mas aqui não tem pauta e impera a lei da voz mais alta. Se você se chamasse Migué, eu apoiaria sua candidatura e até mesmo lavaria seu pé, mas como baba qual animal, o que não convém à filha de afamado jurisconsulto, termine esta rapadura, depois lave a boca com limão e sal. E, como presidente da mesa-de-bar, eu passo a palavra pro próximo bêbado do PAR!
MENINA [Furiosa]
- Ai, que insulto! É um insulto! Pode zombar do meu nome ou da minha borbulhante saliva, mas jamais chame de jurisconsulto um poeta feito da mais árcade oliva! As odes de meu pai são conhecidas em todo o universo, suas estrofes unem versos em todos os idiomas, suas metáforas promovem diásporas, seu talento é uma doença com infinitos sintomas. E, se não se lembra, este partido legou de sua pena a marcha fúnebre de um corrompido império, mais do que um hino...
[alguém grita]
- Um vitupério suíno!
TODOS OS PARISTAS [Declamam com orgulho, mãos esquerdas sobre a testa]
- “Nem azul nem vermelho (Rosa! Rosa! Rosa!)
Fogo acende a noite
E esquenta o chá de erva
Para a mulher doente
Lá fora
O deserto se desorganiza
Aqui
A madrugada acaba só
Nem azul nem vermelho (Rosa! Rosa! Rosa!)
O fogo acende vagarosamente
Uma nesga de esperança
Sobre o escuro atento
E as presas no rebanho diário” (Por onde for, vou arrebanhar!)
DITA (Levanta-se, abotoa a camisa, tira um pozinho imaginário do colarinho e lança um olhar maroto a esmo)
- Concordo platonicamente, apesar de bêbados estarmos todos. A celebração de uma tocaia homem-vítima contra homem-jagunço não é a criminologia dos engodos: coaduna com a filosofia de honra dos bellatorii medievais, perpetua o espetáculo insano dos pancrácios, dos gladiadores e dos carnavais e revela a podridão do Direito com a falência da Justiça para os desiguais. E eis que fiz tudo rimar, se fosse escrito, enfiava numa garrafa e lançava ao mar. Numa garrafa vazia. Portanto, vamos beber!
Cena IV
(Na rua. Ponto final da Cruz Machado com a João Gualberto. Encontram-se Mucilo, Ta Mao e Leandro)
MUCILO BETY
- Ei! Como vão?
TÁ MAO
- Na luta, na luta. (À parte) Que é jargão socialista que vem pelo vício, porque militar n’esquerda é um suplício pr’alguém que é gordo, preguiçoso, um estrupício! E você, Leandro? Parece preocupado, até afoito.
LEANDRO MANTRA TAO
- Sinto-me como um cão sarnento após duas horas de coito, mas como sou apolíneo convicto, se isso disse, desdito. E, bem, não importa. O que importa é que soube por uma estudante de pedagogia, que soube por uma de psicologia, que soube dum mendigo sentado na sarjeta d’agonia, que por sua vez escutou discussões altas num bar da freguesia, que a testa-de-ferro do PAR quer q’eu morra!
TÁ MAO
- Ha! Ha! É bem capaz, mas depois que eu saí, rapaz, não se faz mais assim... A dita aqui se faz de dura, mas é pipa mole e nunca fura. Por isso, não leve nada em política a sério: mesmo que suas motivações fossem um mistério, nada acabaria no cemitério.
LEANDRO MANTRA TAO
- Sou nitiano, levo ainda mais a sério: se fosse rei, seria Lear e perderia um Império. Se fosse plebeu, sofreria como vodu de Nero ou de Tibério. Pois soube que m’humilharam o passado e o presente e decidem meu futuro, querem-me aleijado e doente em briga de foice no escuro!
MUCILO BETY
- A paranóia pode ser saudável, pois, mesmo irracional, treina o corpo e a mente para enfrentar um momento execrável. Mas, sendo eu racional, o execrável no PAR e o saudável em você não os vi. (À parte) O que eu disse? Nem eu entendi!
LEANDRO MANTRA TAO
- Mesmo que não veja, basta que lhe diga que não só querem minha morte, como já planejam o funeral. A tocaia está pronta e o algoz está armado no centro d’imensa teia à espera do inseto malfadado. E como complemento, em que pese o desalento, afirmo que zombaram de seu cisticerco verminal.
MUCILO BETY
- Ah, agora é pessoal! Ninguém me faz de boçal, passando-se por popular sacal! Ou isso ou não tenho quem me ama (ou seja, eu mesmo), esqueço meu nome, o conforto de minha cama e m’afogo na lama! (À parte) Melhor abandonar o discurso, e mandar a todos uma banana.
LEANDRO MANTRA TAO
- Não disse? Miseráveis! Conspiram contra mim e contra ti de forma abjeta e vil, Teseus em Creta, lobos sanguinários de covil! As areias d’ampulheta se esvaem, nosso tempo urge c’o perigo. Se eles querem meu cadáver, agora já sei quem está comigo! No caldeirão da mais azul bruxaria, estarei eu, como um João da Silva em forma de Super-Homem, e erguendo minhas mãos de pedreiro sobre a sesmaria celeste, amaldiçoarei e mandarei à peste qual Antônio Conselheiro tudo o que esses seres sem pensamento bebem e comem!
TÁ MAO
- Nesse caso, seu temor me convenceu, e temo que rápido devemos agir, para não temer o porvir como temeu Odisseu. O mais triste seria o Leandro ficar tão mal quanto eu. Cada alma é um potencial eleitor, e se o clima não acalma, não teremos sequer ator. Vamos, Mucilo, depressa! Para interromper a insanidade e salvar da tragédia esta peça!
Cena V
(Entram no bar Ta Mao e Mucilo)
TÁ MAO [Vermelho como um seminarista acuado por uma freira assanhada]
- Puta-que-o-pariu! Vocês têm que se tocar, cambada! Essa reunião tá uma merda, pior que Luiz Caldas dançando lambada! No meu tempo discutir política era coisa rara, bar era lugar para encher a cara!
MUCILO BETY [Sobe na mesa]
- Olha, galera... Eu não estou entendendo nadica-de-nada e nem quero que me expliquem, porque agora eu fiquei muito puto! Também não sei se sou ingênuo ou astuto ou se o Pira E Se Acaba sabe falar “perscruto”, mas se vocês querem ver sangue acadêmico, é melhor deixarem para o Candomblé tudo o que for polêmico, e pedirem permissão ao babalorixá do Terreiro que eu freqüento.
TÁ MAO
- Moçada, essa idéia de legitimação é o bicho-grilo, digo, o pai-de-santo. Lá no ENED de Pindamonhangaba a base da FENED espatifou igual goiaba por minha causa, e foi na consulta a um médium da Pomba-Gira que eles decidiram o posicionamento sobre a reforma universitária, e fizeram um parecer que mais parecia relatório da vigilância sanitária.
RENEGUMELO
- Então, recapitulando, vamos abrir a aposta: representando a essência do PAR, nossa tocaia que levará o pleno azar ao inimigo xiita, Leandro, para que morto e enterrado jamais seus despautérios repita. Antes, contudo, nossa decisão deverá ser analisada por um pai-de-santo indicado pelo partido, e para que cheguemos a tanto, vamos ao terreiro do Mucilo, onde tudo o mais fará sentido.
JULIANO [Aparece do nada, dentre as cortinas]
- Quanta baboseira! Já vejo tudo, pois enquanto não estudava aprendi a apostar: Uma roseira carcomida é o PAR, e Leandro a sagaz saúva! Dessa longa manus azul não sobrará sequer a luva! E agora vou depilar meu saco no banho de sais que eu ganho mais!
TODOS [Acompanhando Mucilo até o Terreiro]
- Vamos, vamos, uma aposta nos espera e a rinha está por vir!
Vamos, vamos, para pelego comunista essa reza há de servir!
Cena VI
[Noite. Terreiro de Sinhô Mura-Ogum. Há uma cabala desenhada no chão com médiuns nas extremidades, velas, pinturas de Orixá e efígies de Hugo Simas espalhadas]
ACADÊMICO BATATA [Comendo um prato de farofa]
- Estamos longe de casa e da família, longe dos bares bem freqüentados e dos cafés com mobília. Esse terreiro é distante e escuro, e na caminhada errante, em meu sapato fiz um furo. Estou longe dos restaurantes à la carte, onde a esquerda abonada discute Weber e Sartre, e longe da faculdade, onde estimando até o chulé de retratos sem idade nos fazemos queridos. Sentiria medo dessa entifada, não me sobrassem os nutritivos amidos desta farofa sagrada.
ROSCORÓI
- Não acho, ó... Deixa eu falar, pô, eu quero falar Batata, pára de olhar pra mim que eu me desconcentro... Não ri, não ri [aponta para alguém]... Pô... Assim, então... Meu, pô, não acredito! Esqueci o que ia falar, mas se alguém quiser eu repito! Não acho, ó... pô![Desconsolado, entrega-se aos cafunés desdenhosos de uma dona].
MUCILO BETY [À parte. Afasta-se, fantasia-se de babalorixá e volta acompanhado de um adevogado pigmeu que corre e dá mortais pelo terreiro]
- Agora que a noite me oculta
E que capto a energia mística
Este grupo pagará cara multa
Por zombar
De minha enfermidade cística!
Do veneno de meus vermes
Rápido qual astuto Hermes
Fá-los-ei, ó ingênuos, provar
Morte de peixe fora do mar!
Não aprecio a contenda
Pouco importa seu resultado
Mas se o pretexto não é fardo
Esta será minha senda
Assumindo o papel de pai-de-santo
Vingativa e rubra será a cerimônia
Convertido será o ritual banto
Em amálgama de lágrimas e insônia
Sou agora Sinhô Mura-Ogum
Babalorixá de grande renome
Minha magia é como o pum
Trovão que ar e água consome
Relâmpago do lugar nenhum
Que às bestas do além dá fome
TODOS [aflitos]
- E aos impotentes?
MURA-OGUM
- Dá fome também.
TODOS [aliviados]
- Amém.
MURA-OGUM
- Fidelidade e amor, legados de Zambi nosso Senhor seguidos pelo mirim adevogado, que se converteu à crença como ao carnear o gado, e hoje não há quem o vença... Vejam que milagre, virou um Bambi! Pular assim exige a incorporação do fugaz ‘spírito do sapo-boi!
TODOS
- Oooohhh! E vai e vem e foi! E vai e vem e foi!
MURA-OGUM [Empunha um tacape]
- Agora que se exercitou, pagarás por ter sido increu, pelos tempos em que não orou! Pigmeu, és do tamanho de uma bituca, mas menor é a minha compaixão: com este tacape moerei tua nuca, de teus miolos farei pirão! [Gritos]
MURA-OGUM [À Ialorixá, depois de rezar pelo fim da política partidária]
- Procedi à reza exata e louvei o sangue coagulado, mas os espíritos em bravata descansam em integral enfado. Falhei, e tudo foi insatisfatório. Ó minha Ialorixá, devo beber o licor do mictório, até o Sol raiar bater-cabeça aos pés do Orixá ou esvair de um golpe só minhas entranhas?
IALORIXÁ
- A última, com certeza. Quero vê-lo sobre a mesa, morrer tal qual rês velha entregue às piranhas!
MURA-OGUM
Pois como sou sacerdote de fé e senhor do meu destino, não acatarei o seu imperdoável desatino, e escolherei beber a minha pura urina, que a mim nutre e aos iníquos calcina, incluindo Ialorixá, aquela que não sabe se prostrar sem ser do-contra.
IALORIXÁ
- Pensei que fosse sábio qual coruja ou arguto qual raposa, mas vejo agora que diante da morte sua fé foge por esporte, lisa como a mais esguia lontra!
MURA-OGUM [Bebe sua própria urina]
Não ‘stá funcionando, nem gosto de xixi sinto. Ah, que falta faz o absinto! Só há uma solução, o viés do mais insano: a reza-forte, o sacrifício humano! E agora? Quem se dispõe com’oferenda a Exu Todo Poderoso? Preciso de um corpo virgem, descoberto em meio à fuligem; doces lábios que resistiram às vespas; mãos suaves, com as cicatrizes das felpas; olhar luminoso como dia e misterioso como a noite; lombo de menina-d’engenho que sobreviveu à senzala e ao açoite!
ACADÊMICO BATATA
- Infelizmente eu não posso ser o escolhido, pois uma quiromante me disse: “serás pastor, terás riquezas e arrumarás marido”, mas se há um critério em que ninguém chia, ele se chama PARIA MIA!!! Nome de santa e de heroína das FARC! A fusão de Madre Teresa com Joana D’Arc! É a nossa salvação, vinda dos grotões da minha imaginação! Paria, não mia, responde: aceita sublimar-se sem pistas e superar a matéria que te prende para flutuar no limbo mítico dos mártires paristas?
PARIA MIA [Luzes. Paria Mia passa por radical transformação: pára de piscar, deixa de mascar chiclete e abandona sua prosa vulgar]
- Ai, sim...
Eu estava indecisa até um minuto atrás,
Pensava em resistir, lutar e fugir,
Agora sei, como não sabia Barrabás
Que devo c’outro mundo interagir
[Ela é vestida com a toga-de-umbanda e amarrada às estacas no chão. O sacrifício começa]
- Ai, de mim!
Da direita-querosene sou cria:
Turbou-me com fuligem o pensamento
Queimou-me o mais nobre sentimento
Legou-me a fumaça da agonia!
[Tambores, berimbaus e gaitas-de-fole tocam em frenesi. Sua face é coberta com o sangue de pomba ritual]
- Ai, estopim!
Da esquerda veio a redenção:
Batizou-me novamente como pia
Ungiu-me c’os florais da Samaria
Fez da poesia a minha oração
[O espírito da morte a possui. Ela se contorce e grita]
- Ai, é o fim!
Reencarnada como flor-de-palma
Ou como saltitante e feliz anta
De nada ser o que não é adianta
Se retorna ao pó a própria alma
[Desvanecendo, Paria Mia balbucia um último e sofrível lamento]
- Ai, caprichoso querubim
Dedilha a sua harpa lancinante
Deitada em cheiroso sassafrás
Quero ver a Morte vir em paz
Galopando um esqueleto errante
ACADÊMICO BATATA [De olhos vermelhos]
- Paria Mia, abandona o ritual, foge ao suplício!! Arrepia, oferece o corpo sensual, mas não em sacrifício!!
MURA-OGUM [Toma o corpo epiléptico de Paria Mia]
Tarde demais! No místico não interpelam vários finais! Uma escolha foi feita, e Paria Mia, a necromante dos bacanais, pertence a um espírito sem seita! Em suas vísceras se enlaça a Pomba-Gira, que rejuvenesce enquanto sua hospedeira expira! Sinto meu poder, ele cresce como uma erupção, mais implacável que as três cabeças de um Cérbero apocalíptico! Feneçam todas as Repúblicas que como linces se vestem da democracia e todos os partidos que cultuam os deuses pagãos da burocracia, feneçam todos os imbecis no último breu eclíptico!
FELIPE DREAMER [De joelhos]
- Paria Mia, seus gemidos são os Salmos de Davi! Não posso acreditar no que ouvi, é trinar agudo de sabedoria, a pura clarinada da erudição. Que pare, pare agora a cantoria, ou terei mil jatos d’ereção. ‘Stou atordoado qual codorna em tiroteio, eriçadas pelas penas como eu pelos pentelhos... Caí tombado em meus joelhos, altivo só meu pássaro-irmão do meio. O cigarro que havia em minha boca foi ao chão, assim como o isqueiro e o maço de cigarros da outra mão. Oh, gira meu cocuruto, pulam de meus bolsos porções de baseado e inumeráveis charutos. E q’imagem é esta à minha frente? São Fadas, ou que é esta visão? Flutuam pelo céu, balouçam em êxtase piteiras-de-condão, dispersam o conhecimento alternativo em nuvens de tabaco mágico nativo!
IALORIXÁ
- Vixe, ó menino... É só um Preto Velho travestido que para o resto da vida vai te acompanhar.
FELIPE DREAMER [Chora]
- Não, não pode ser! E as Fadas, lindas e de gracioso cantar?
IALORIXÁ
- Tudo imaginação, ‘cê’stá drogado! Além do espírito viado, vai ganhar também um eterno mau-olhado!
FELIPE DREAMER [Segura as calças e foge para o Chile]
- O mau-olhado eu já tenho, não é muito o que perdi! Embora, pensando bem, a falta do perdido eu vá sentir.
MURA-OGUM [Ri à exaustão]
- Qualquer prece a qualquer Santo é inútil depois que se levanta a mão espectral de Banto! Iemanjá, Yelael, afoguem os jovens reacionários, os políticos que vivem às esgueiras, queimem-nos em fogueiras como aos farsantes templários! Todos os pelegos retornarão à condição de capachos sôfregos nos quais revolucionários trôpegos esfregarão seus coturnos! Encerrou-se a cabala, completou-se o último ciclo d’umbanda, e agora o Portal do Outro Mundo se abrirá aos meus desejos: chore, M&M ♀, pois a extinção não fará exceções ao coala e ao urso panda! Incluirá também o bebê que engatinha e a mais bela curuminha! Que toda a pseudo-esquerda a negar o Supremo Cisto [coro feminino repete: “Supremo Cisto, Supremo Cisto, Supremo Cisto”] afunde no fundo do poço sem fundo, com os braços histéricos atados à cruz de Cristo, com seus olhos cegos vedados com xisto, com todas as vozes abafadas pelo último arquejo da Besta!
[Luz vermelha e sons de vômito. Ao fundo, um meirinho declama artigos da revogada Constituição de 1988, substituída por outra feita na China. Todos os presentes, inclusive os figurantes, os sonoplastas, o público e Mura-Ogum, intoxicado com sua urina, fecham os olhos, agonizam e rastejam no chão até a morte, exceto Leandro, o Tao Indômito, O Senhor do Azar e da Sorte]
LEANDRO MANTRA TAO [Com um pão seco nas mãos]
- Imponho enfim a vitória sobre os que me negaram a autonomia! Aprendi com os mendigos a desfrutar do lixo, a blasfemar os injustos e a ignorar Durkheim, o teórico da anomia, aquele que não vivia segundo o da-sein! Fui aprendiz de operários e de sábios, fiz do rejeito meus erários, do chorume meus alfarrábios. No pó dos antigos textos me fiz traça, flâmula iconoclasta, e fui perseguido pelos de minha raça por demolir os estamentos e as castas. Conduzi o carro sem volante de Arjuna, O Arqueiro, e com os beduínos fumei narguile e dispensei o cinzeiro. Muitos investiram em minha ruína, fustigando mastodontes-de-Olinda de azuis e verdes crinas. Aos iníquos, cegos e inócuos emprestei meus óculos. Qual Páris vinguei meus estertores. Meu ponto fraco já não existe, já não existem Heitores! Mergulhei na literatura dos anti-heróis, brinquei como os Macunaímas, segui ao contrário os passos dos curupiras, dos sacis egoístas de mil arrebóis ganhei yu’rema. Mestre da filosofia dos mestres iogues, lutei mentalmente contra sucuris, tigres e buldogues. Por meus feitos fui abençoado com um harém infinito, de virgens, estrangeiras, irmãs e primas! Louvo Shiva, Parvati e Ganesha, a revelação e o dilema. Figura furtiva e rápida, metamorfoseado em Makarenko e Kafka, salivo salitre e espirro nafta! Sou a mosca a zumbizar em cada sopa, o andarilho errante vestido em estopa, o viajante oculto da galé fantasma sem proa ou popa! E finalmente, tenham-me hoje pelo sobrevivente único da política acadêmica que em seus campos devastados me refugou qual Aníbal no massacre púnico, mas que em Justiça foi abandonada à morte qual uma praga endêmica dos banhados, ignorando para sempre quem fui, quem serei, quem sou.
FIM